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A COR DA ALMA DA GENTE

  • Foto do escritor: Tacia
    Tacia
  • 17 de ago.
  • 4 min de leitura
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Dia desses, fui atropelada pela imaginação da minha afilhada de sete anos. Criança tem o dom de ver o mundo de um jeito diferente: não vê malícia, nem maldade. E aquele dia foi mais uma evidência irrefutável disso.

Ela me pediu que contasse uma historinha, para depois poder fazer um desenho “lindo para você, Tita!”. E, como não tenho muita criatividade para inventar histórias (fazer o quê?) e não queria contar algo fútil ou sem uma moral (não é sempre que tenho a oportunidade de ensinar algo bom a uma criança e deixar meu legado no mundo — mesmo que seja através dos filhos dos outros), resolvi me apropriar de uma das passagens mais conhecidas do cristianismo: o Bom Samaritano.

Comecei a narrar sobre o homem que descia de Jerusalém para Jericó e foi surpreendido por salteadores, que o espancaram e deixaram moribundo à beira da estrada. Então passaram por ele um sacerdote e um levita, mas nenhum prestou socorro. Só depois veio um samaritano — e foi ele quem parou, cuidou das feridas e o levou a uma hospedaria.

— Que legal, Tita. Por isso que é o Bom Samaritano, porque ele é bom, né?

— Exatamente — disse eu, orgulhosa por ter transmitido a mensagem.

Ela começou a desenhar o que tinha entendido daquela história toda. Quando estava quase terminando, algo chamou minha atenção: havia um homem deitado no chão (o moribundo, concluí) e outro ao seu lado (o samaritano), pintado de azul.

— Azul? — perguntei.

Minha mãe é branca, meu pai é moreno, e meu irmão costuma dizer que a mistura dos dois resultou nele: um caramelo salgado delicioso. Minha irmã é bronzeada. Meu sobrinho às vezes fica encardido. Mas nunca vi ninguém azul.

Curiosa com aquele apelo ao não convencional, questionei:

— Mas o seu bonequinho está azul, princesa. Ele está doente?

— Não, Tita, é a alma dele que é azul.

— A alma? Mas... por que azul?

— Ah, é igual à roupa de Jesus naquele quadro, lembra? Ele estava de azul. E Jesus é bom. E o moço do desenho também foi bom, porque ele fez uma caridade. Então a alma dele também é azul.

— Você acha que toda pessoa boa tem alma azul?

— Sim. Mas é azul claro, igual à de Jesus. Azul escuro não é coisa boa.

— Ah, não?

— Não. Porque o azul escuro é quando você está escondendo alguma coisa porque você fez alguma coisa errada. Aí faz sombra e fica tudo escuro.

Uau, pensei.

Aquela afirmativa me despertou um interesse imediato e resolvi investigar mais:

— E a minha alma... que cor ela tem?

Ela me olhou... olhou o desenho... voltou a olhar para mim e por fim respondeu convicta:

— Laranja, Tita.

— Laranja? Por quê?

— Porque laranja é tipo... o sol — disse, apontando para o próprio desenho. — Você já viu sol triste? O sol tá sempre sorrindo... e tem uma boca bem grande e vários dentes. Igual você! Então sua alma deve ser laranja, igual ao sol.

Fiquei tão intrigada que, assim que cheguei ao trabalho no dia seguinte, lancei o tema durante o café: qual é a cor da alma da gente?

Até então eu só conhecia os significados convencionais: vermelho para o amor, preto para o luto, branco para a paz. Mas minha visão poética de adulta com alma de criança começou a se perguntar se eu estivera errada a vida inteira. Mais que eu, meus colegas ficaram empolgadíssimos. A conversa ganhou vida, cheia de ideias criativas que nunca haviam me ocorrido — e que, de repente, faziam todo sentido.

Fiquei surpresa quando mencionei minha ideia sobre o preto e me rebateram com seriedade.

— O preto me lembra a amizade.

A amizade? Um sentimento tão caloroso associado a uma cor tão sombria? Para mim, preto era o nada, o vazio. Como quando você está num quarto escuro, abre os olhos e não enxerga nada. Medo.

— Pois é. Mas quando se é amigo de alguém, confia-se até no escuro. E escuro lembra o preto.

Hum... Nem me atrevi a questionar. Limitei-me a rever meu conceito jurássico sobre as cores. A conversa se estendeu, e fiz descobertas incríveis.

Descobri que marrom é a cor da alma de todas as avós. Como quando você entra na casa delas e o chão te abraça dizendo: “pode pisar à vontade, eu te seguro”. Uma cor que parece pesada, mas tem cheiro de café — igual à minha avó.

Descobri também que branca é a alma das pessoas corajosas. Porque branco é a cor da respiração antes do primeiro passo. É o silêncio que grita: “agora vai”.

Nunca pensei que o tema renderia tanta beleza. Foi chocante perceber como algo tão comum podia ganhar interpretações que nunca me ocorreram.

Minha irmã anda meio verde, coitada. Está doente. Talvez seja de tanta sopa de legumes que minha mãe a obriga a comer para melhorar (como se eu precisasse de uma desculpa dessas para devorar sozinha uma panela inteira de sopa de qualquer coisa).

Na hora do almoço, meu pai estava cinza (como o céu quando não sabe se chove ou deixa o sol sair). Ia visitar um cliente para passar um orçamento e parecia ainda mais preocupado do que de costume.

A Patrícia anda meio amarela (a mesma cor que a gente fica quando vai contar um segredo e ri no meio, sabe?). Está apaixonada! E o melhor é que o namorado dela também anda meio amarelo.

Por falar nisso... não tem ninguém amarelo por mim.

Estou roxa de inveja!


Escrevi essa crônica lá por 2012 (a data exata se perdeu no tempo, junto com algumas senhas de e-mail). Esse não é o texto 100% original, mas fico feliz de ver que o mesmo encanto que eu tinha com certas coisas naquela época ainda segue brilhando — firme e colorido — na minha alma até hoje.


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